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Resenha: O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa

Por Jeniffer Modenuti

Robert Darnton
O historiador culturalista Robert Darntonapresenta-nos o “Grande massacre de gatos e outros episódios da históriacultural francesa”. Este livro tenta explorar visões de mundo pouco familiares. Peregrina por arquivos do Antigo Regime e encontra material em todos os documentos que causem estranhamento ao leitor, em acontecimentos que eram cotidianos para os franceses do século XVIII e que hoje são insignificantes a nós.

  

“Quem é ranhento, que assue o nariz!” Quando não conseguimos entender um provérbio, uma piada, um ritual ou um poema, temos a certeza de que encontramos algo. Analisando os documentos onde ele é mais opaco, talvez se consiga descobrir um sistema de significados estranho. O que pode até conduzir a uma pitoresca e maravilhosa visão de mundo. (DARNTON. 1986. p. XV).
Em o Grande Massacre de Gatos a história é trabalhada de forma etnográfica, onde o autor procura analisar as maneiras não somente de pensar, mas de como os franceses não iluminados da França Iluminista pensavam no século XVIII.

O primeiro capítulo do livro “Histórias que os camponeses contam: o significado de mamãe ganso” apresenta a França, e particularmente os camponeses e artesãos, através de um folclore familiar aos franceses daquele século. Dentre vários textos mostra ao leitor uma versão primitiva do famoso conto de “Chapeuzinho Vermelho”, que é em muitos aspectos diferente das versões atuais.

Em “Os trabalhadores se revoltam: o grande massacre de gatos na Rua Saint-Séverin”, segundo capítulo do livro, Darnton narra o massacre de gatos que intitula o livro, fato que estava rodeado pelas tradições de grupos urbanos de artesãos, rebelados contra seus patrões, os burgueses, em uma França pré-industrial.

No capítulo terceiro, titulado “Um burguês organiza seu mundo: a cidade como texto”, nos é mostrado o significado da vida urbana para um burguês provinciano, através de uma bizarra discrição de uma cidade.

Transferindo as observações para Paris e para uma esfera intelectualizada, o quarto capítulo, “Um inspetor de polícia organiza seus arquivos: a anatomia da república das letras” apresenta um arquivo curioso sobre os intelectuais da época, e através dessa visão da polícia, mostra a maneira destes registrar a realidade.

Continuando no cenário intelectual parisiense, o capítulo quinto, “Os filósofos podam a árvore do conhecimento: a estratégia epistemológica da Encyclopédie” classifica este cenário dentro de uma epistemologia no texto-chave do Iluminismo.

O sexto e último capítulo, “Os leitores respondem a Rousseau: a fabricação de sensibilidade romântica” aponta um novo caminho de sentimento e pensamento decorrentes da ruptura de Rousseau com os Iluministas, observado através da leitura deste intelectual pela visão de seus leitores.
A noção de leitura está em todos os capítulos, porque se pode ler um ritual ou uma cidade, da mesma maneira como se pode ler um conto popular ou um texto filosófico. Os métodos de exegese podem variar, mas, em cada caso, a leitura é feita em busca do significado – o significado inscrito pelos contemporâneos no que quer que sobrevida de sua visão de mundo. (DARNTON. 1986. p. XVI).
Darnton fez uma leitura do século XVIII e também anexou textos à obra para que os leitores também pudessem ter sua própria interpretação. Ele não trabalha pretendendo atingir a totalidade, visto que não acredita haver apenas um tipo de camponês ou burguês. Ele quer “desviar do caminho batido” e apresentar pontos de vista nada comuns, que se demonstram reveladores.
Não vejo por que a história cultural deva evitar o excêntrico, ou abraçar a média, porque não se pode calcular a média dos significados nem reduzir os símbolos ao seu mínimo denominador comum. (DARNTON. 1986. p. XVII).
Abandonando as diferenciações casualmente feitas entre cultura de elite e cultura popular, Robert Darnton procura colocar neste livro os intelectuais, os contadores de contos e matadores de gatos, deparando o leitor com uma leitura que mostre como tanto a elite do pensamento quando as pessoas comuns encaravam os mesmos problemas de sua realidade histórica e social.

Darnton encerra sua apresentação dizendo “[…] gostaria de convidar o leitor a começar a palmilhar o meu texto. Talvez não fique convencido, mas espero que aprecie a jornada”. (DARNTON. 1986. p. XVIII).

Biografias: Robert Darnton e Charles Perrault
Robert Darnton, nascido em dez de maio de 1939 é historiador, reconhecido com um dos maiores especialista em história da França do século XVIII, seus estudos estão voltados para o Iluminismo e Revolução Francesa. Possui inúmeros livros publicados, inclusive no Brasil, o mais conhecido é O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa (1986), Boemia literária e revolução (1987), O beijo de Lamourette (1990).

Seus escritos não são para o “mundo acadêmico”. Ele escreve tendo em vista o leitor comum, o público geral, onde ele informa sobre a condição humana tal como ela foi vivida no passado, não com o objetivo de dar respostas aos fatos históricos, mas chegar a respostas já ofertadas por outros.

Em uma entrevista cedida à Revista de História.com.br, em outubro de 2010, Robert Darnton diz a respeito de seu livro O grande massacre de Gatos:

RH: Anedotas ou piadas podem ser pontos de partidas para estudos históricos? 
RD: Acredito que sim. É o que está dito em O Grande Massacre de Gatos, baseado em episódios aparentemente insignificantes da história francesa. Eu estava seguindo os passos de uma antropologia simbólica, influenciado por nomes inspiradores como Clifford Geertz, Victor Turner, Mary Douglas, e, sobretudo, Evans-Pritchard. Eu diria que, se você entende a piada, compreende também a cultura. Uma piada é uma espécie de porta de entrada para um outro sistema cultural. Para mim, essa é uma questão maravilhosa a ser explorada. Hoje, no entanto, uma nova geração de críticos argumenta que eu e todos aqueles renomados antropólogos que citei estaríamos, como dizemos no inglês, othering [de other, “outro”] determinadas culturas. Othering seria uma maneira de definir e garantir a própria identidade positiva por meio da estigmatização de um “outro’. É reificar uma cultura e talvez fazer com que ela pareça mais exótica do que é – o que também seria uma forma de afirmar a autoridade do antropólogo. Então eu estaria othering os franceses do século XVIII? (Figueiredo, Luciano; Schwarcz, Lilia Moritz. Entrevista com Robert Darnton. Revista de História.com.br. 26 de outubro de 2010. Disponível em: <http://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/robert-darnton>. Acesso em: 10 de jun. de 2011.)

Charles Perrault
Charles Perrault, contemporâneo do fabulista gaulês La Fontaine, sempre viveu em Paris e morreu aos 75 anos. O poeta da Academia Francesa não atuou exclusivamente no mundo das letras. Além de trabalhar como advogado tornou-se superintendente de construções do Rei Sol Luís XIV, posição política em que se destacou ao lado do ministro Colbert. 

Membro da alta burguesia, Perrault foi imortalizado por criar uma literatura de cunho popular que caiu no gosto infantil e contou também com a aprovação dos adultos. Com pouco mais de 50 anos, trocou o serviço ativo pela educação dos filhos. Movido por esse desejo, começou a registrar as histórias da tradição oral contadas, principalmente, pela mãe ao pé da lareira.

Com quase 70 anos, publicou um livro de contos conhecido, na época, como “contos de velha”, “contos da cegonha” ou “contos da mamãe gansa”, sendo o último o título por que ficou conhecida a obra em todo o mundo. A primeira edição, de onze de janeiro de 1697, recebeu o nome de “Histórias ou contos do tempo passado com moralidades”, que remete à famosa moral da história presente ao final de cada texto.

Com redação simples e fluente, as histórias eram adaptações literárias que traziam ao final os conceitos morais em forma de verso. Essa perspectiva promove, desde a fase inicial, na chamada literatura infantil a existência de um teor pedagógico associado ao lúdico.

Os “Contos da mamãe gansa” se constituem de uma coletânea de oito histórias, posteriormente acrescidas de mais três títulos, ainda que num manuscrito de 1695, só encontrado em 1953, constassem apenas cinco textos. Os contos que falam de princesas, bruxas e fadas trazem histórias que habitam até hoje o imaginário infantil como “A Bela Adormecida”, “Chapeuzinho Vermelho”, “Cinderela”, dentre outros, publicados em 1697. A obra constitui-se de uma compilação de contos populares que, na época, eram menosprezados em seu tempo.  Mãe Gansa, numa ilustração da edição original, assemelha-se a uma velha fiandeira que conta histórias. Imortaliza-se, assim, este símbolo no mundo literário.

 Os oito contos iniciais são:
·         La Belle au Bois Dormant – A Bela Adormecida no Bosque
·         Le Petit Chaperon Rouge – Chapeuzinho Vermelho
·         La Barbe-Bleue – O Barba Azul
·         Le Maître Chat ou Le Chat Botté – O Gato de Botas
·         Les Fées – As Fadas
·         Cendrillon ou La Petit Pantoufle de verre – A Gata Borralheira
·         Riquet à la Houppe – Henrique, o topetudo
·         Le Petit Poucet – O Pequeno Polegar
Os três contos incluídos posteriormente na coletânea são:
·         · A Pele de Asno
·         · Os Desejos Ridículos
·         · Grisélidis
Histórias Que os Camponeses Contam: O Significado de Mamãe Ganso
Na proposta de Robert Darnton, de desvendarmos o “universo mental dos não iluminados da França Iluminista”, o historiador nos apresenta o primeiro conto francês que hoje é conhecido mundialmente, porém o faz em sua versão primitiva.

A versão de Chapeuzinho Vermelho que Charles Perrault recolheu da tradição popular apresenta um final trágico, pois tanto a avó como Chapeuzinho são engolidas pelo lobo. Por esse motivo, não era originalmente considerada como conto de fadas. O final feliz faz-se presente na versão dos Irmãos Grimm, no século XIX, com o aparecimento do caçador que salva a menina e sua avó e coloca as pedras no estômago do lobo. A versão de Charles Perrault termina com a moralidade expressa em um poema de quinze versos, o qual metaforiza a sedução da donzela.                                  

Segundo interpretações de historiados e psicanalistas, o capuz vermelho que acompanha a menina nas versões de Perrault e na dos Grimm, remete aqui, simbologicamente a cor do sangue, da menstruação, cor da alma, da libido e do coração. A partir disto, tem-se a visão da relação simbólica entre o Lobo e Chapeuzinho. Ao ser observada a estreita ligação entre “lobo” e Chronos, pode-se entender que talvez este Lobo do conto seja o tempo devorador a destruir a fase menina de Chapeuzinho, já que nela se desperta a sua nova condição marcada pela menstruação e o desabrochar da libido; a juventude e os desejos amorosos passam a envolvê-la nesta transformação. O simbolismo do capuz vermelho é muito sugestivo como observado em suas palavras: “O ‘chapeuzinho vermelho de veludo’ é um símbolo de menstruação. A menina de cujas aventuras nos falam tornou-se adulta e vê-se agora defrontada com o problema do sexo.” (Fromm, 1973: 175). Para Fromm, a advertência consiste em alertar a menina da possível perda de sua pureza, ao passo que quebrando a garrafa (símbolo da virgindade), e se desviando do caminho.
Essa história de chapeuzinho vermelho era uma de muitas outras histórias contadas pelos camponeses ao redor de suas fogueiras. O aperfeiçoamento das histórias pelos irmãos Grimm deixou-as mundialmente conhecidas, principalmente por crianças onde assim viraram contos de fadas e passaram a ter finais felizes.

A história de “Bela Adormecida”, da versão de Perrault para a versão dos irmãos Grimm, passa a ter muitas partes “cortadas” como a gravidez e a madrasta ogra, e assim se segue as modificações feitas em muitas histórias, Barba azul, João e Maria, etc.

Darnton, em suas observações sobre os contos franceses diz (1986 p. 29) “do estupro e da sodomia ao incesto e ao canibalismo. Longe de ocultar sua mensagem com símbolos, os contadores de histórias do século XVIII, na França, retratavam um mundo de brutalidade nua e crua”. 

Os folcloristas franceses registraram cerca de dez mil contos, em muitos dialetos diferentes do idioma francês. Histórias narradas por camponeses antes mesmo de que a alfabetização chegasse ao campo, a maioria destes contos foi recolhida por escrito entre 1870 e 1914.

Muitos folcloristas argumentam que os registros da Terceira República formam evidências suficientes para que possam dizer que existe sim uma tradição oral existente há dois séculos.
“Num estudo de chapeuzinho vermelho por exemplo, Paul Delarue comparou trinta e cinco versões, registradas em toda uma vasta área de langue d’ oïl. Vinte versões correspondiam exatamente ao primitivo ” conte de la mère grand” com exceção de alguns poucos detalhes.” (DARNTON. 1986 p. 31).
Com todos esses finais trágicos e obscuros as histórias eram contadas para divertirem os adultos e assustar as crianças, com o sentido de advergencia como é o caso de “chapeuzinho vermelho”.
Rejeitar os contos populares porque não podem ser datados nem situados com precisão, como os outros documentos históricos, é virar as costas a um dos poucos pontos de entrado no universo mental dos camponeses, no tempo do antigo regime. (DARNTON. 1986 p. 32).
Sem dúvida o autor nos diz que o processo de transmissão afeta as histórias de maneiras diferentes, mas mesmo assim as tradições orais parecem ser tenazes e altamente duráveis em quase toda parte. O próprio senso comum em uma elaboração social da realidade, que varia de cultura para cultura. Expressa a base comum de uma determinada ordem social, portanto para reconstituir a maneira como os camponeses viam o mundo, nos tempos do antigo regime, é preciso começar a ver o que eles tinham em comum, entre as guerras epidemias e (DARNTON. 1986 p. 43) “Muitos não resistiram. Neste caso saíam além pela estrada para sempre, guiando à deriva com os destroços da população flutuante da França, que incluía vários milhões de criaturas desesperadas, por volta de 1780”.

A morte vinha da mesma forma para todos, tanto para os miseráveis quanto para as famílias que permaneciam em suas aldeias e se mantinham acima da linha de pobreza.

Ainda que com todos os pesares da vida, os camponeses do século XVIII tinham uma ordem social estável. Eles eram relativamente livres: sujeitos a um sistema senhorial não conseguiam possuir terras o suficiente para se sustentarem e o pouco que conseguiam produzir também deveria ser pago ao Senhor das terras. Como diz o autor
A história parecia “imóvel” ao nível da aldeia, porque o senhorialismo e a economia de subsistência mantinham os aldeões curvados sobre o solo, e as técnicas agrícolas primitivas não lhes davam qualquer oportunidade de se desencurvarem. (DARNTON. 1986. p. 41).
Os camponeses viviam em casos de subnutrição crônica, assim não tinham como se proteger das doenças, as mulheres se casavam tarde, tal qual as ideias da teoria malthusiana, porém a mortalidade também era grande.

Na França no século XVIII os camponeses por causa da crise em que viviam, muitos saiam das aldeias e ficavam mendigando, ou fugiam para estradas vivendo de assaltos e logros até morrerem de fome.

A situação da França no século XVIII era de extrema injustiça social na época do Antigo Regime. O Terceiro Estado era formado pelos trabalhadores urbanos, camponeses e a pequena burguesia comercial. Os impostos eram pagos somente por este segmento social com o objetivo de manter os luxos da nobreza.
Os demógrafos não encontram nenhuma prova de controle da natalidade, ou de ilegitimidade disseminada, antes do fim do século XVIII. O homem do início da era moderna não entendia a vida de uma maneira que o capacitasse a controlá-la. A mulher do mesmo período não conseguia conceber o domínio sobre a natureza, e então dava à luz quando Deus queria. Mas o casamento tardio, um curto período de fertilidade e os longos espaços de amamentação ao seio, que reduzem a probabilidade de concepção, limitavam o tamanho de sua família. O limite mais duro e eficaz era imposto pela morte, a sua própria  e a de seus bebês, durante o parto ou na infância. Os filhos, natimortos, chamados chrissons, eram algumas vezes enterrados informemente, em túmulos coletivos anônimos. Os bebês eram, algumas vezes, sufocados por seus pais na cama […] famílias inteiras se apinhavam em uma ou duas camas e se cercavam de animais domésticos, para se manterem aquecidos. Assim, as crianças se tornavam observadoras participantes das atividades sexuais de seus pais. […] as crianças trabalhavam junto de seus pais quase imediatamente após começarem a caminhar, e ingressavam na força do trabalho adulta como lavradores, criados e aprendizes, logo que chegavam à adolescência. (DARNTON. 1986. p. 45-47).
Os contos mostram uma fantasia, mas que por trás trazem a realidade que os camponeses do Antigo Regime passavam. Nos contos como, “Cinderela” – que remete à situação conflitante que passavam as crianças com suas madrastas, que eram muitas na época, e mostra também a questão da fome que assolava a população. A jovem, deixada sem comer por sua madrasta, até que a jovem, com a ajuda da Virgem Maria, consegue fazer uma árvore de belos frutos se curvar quando a garota assim o desejar. Sendo a única que pode colher frutos da árvore, o príncipe, desejoso dos frutos de tal, se casa com a jovem e eles vivem felizes para sempre.

Nos contos do “Pequeno Polegar” e o “João e Maria” fala dos filhos caçulas e crianças abandonadas por seus pais. A questão da divisão da herança – que era quase nada – também era tema pertinente aos contos franceses.

Darnton em seu livro diz da seguinte maneira (DARNTON. 1986 p. 49) “Perrault escreveu seu conto em meados de 1690, no auge da pior crise demográfica do século XVII período em que a peste e a fome dizimavam a população no norte da França”

Desejar comida, não era desejo ridículo. Nos contos camponeses, o final feliz era aquele que o prato do herói ficava cheio. Os contos estão situados no mundo real. Os objetos de desejo dos camponeses são do seu cotidiano. Em todos os contos nota-se que o bem vence contra o mau, que no caso o pobre vence sobre o rico.

Esses contos, em que são narradas histórias da realidade, orientavam os camponeses neste mundo de loucura, tentavam mostrar a crueldade e, além disso, uma ordem social cruel em que viviam os camponeses.

Os contos camponeses também eram contados também em outros cantos da Europa. Darnton em trabalho analisa, além dos franceses, os contos provenientes da Inglaterra, Alemanha e Itália, procurando destacar as principais características dos contos de cada região, que expressam a história daquele determinado povo no tempo e no espaço.

A Mamãe Ganso da Inglaterra possui um significado mais presente em seu tom, tem mais fantasia e vivacidade que os contos da França e também um toque de agonia: retratam a falta de comida e vestimentas, falam de crianças abandonadas, pobres miseráveis, mendigos, dentre outros.

Mesmo que dotados de grande fantasia, tom humorístico e rico em detalhes, os contos da Inglaterra não alcançaram o rico e popular dos contos franceses.
As versões alemãs dos contos empregam à narrativa toques de drama e detalhes horríveis, macabros e violentos.

Já os contos italianos tem com uma de suas grandes características o humor, o tom burlesco.

Ainda que todos os contos façam parte de uma mesma estrutura: relatam a vida dos camponeses – os contos franceses, italianos, alemães e ingleses possuem suas próprias características, que relatam as tradições na qual estão inseridos, e seus efeitos também são os mais diversos: drama, humor, horror, etc.

A maneira como os camponeses contam suas estórias nos dão indicativos sobre as visões de mundo dos camponeses do início dos tempos modernos. Retratam suas formas de encarar a dureza da vida e nos mostra detalhes de seu cotidiano, imaginário e crenças.
 Em sua versão inglesa o “Pequeno Polegar” usa roupas velhas ganhadas por uma fada. Faz uma alusão às roupas ganhadas e improvisadas que eram usada pelos camponeses. 

“As fadas puseram-lhe um chapéu feito de uma folha de carvalho,uma camisa feita de teia de  aranha, paletó de lunagem de cardo e calças de penas”. (DARNTON. 1986. p. 64).

“Joãozinho, o matador de gigantes”, um bocado corajoso, mas um pouco preguiçoso, encontrava soluções para tudo e estava em busca de uma vida boa e despreocupada:
Joãozinho negocia a vaca da família por algumas poucas favas e, depois ascende a riqueza com ajuda de amparos mágicos – um pé de feijão fantástico,uma galinha que põe ovos de ouro e uma harpa falante. (DARNTON. 1986. p. 65).
Em “O padrinho morte”, um pai que em procura da riqueza para seu filho, realiza pactos com a morte. Os demônios são constantemente presentes neste e em outros contos. Eram pessoas descrentes que Deus fazia o bem, acreditavam que Deus só abençoavam pessoas com muita riqueza.

Darnton (1986. p. 78-79) em sua análise sobre os contos franceses nos diz que eles não tinham por intenção moralizar, apenas demonstravam o mundo tal como era a eles: duro e perigoso, onde os personagens vivam em um mundo bem real, que parecia arbitrário e amoral, no qual os desastres e as calamidades deveriam ser suportadas. (DARNTON. 1986. p. 79) “é a natureza inescrutável e inexorável de calamidade que torna os contos franceses tão comoventes, e não os finais felizes que eles, com frequência, adquirem, depois do século XVIII”.

Os contos franceses se situam na aldeia, são bem terrenos, e não tão fantásticos e misteriosos quanto os contos alemães, ou cômico-burlescos, como os contados na Itália.
Os heróis franceses são bem reais, são vítimas de uma estrutura social que os exclui: são órfãos, enteados, filhos caçulas, crianças abandonadas, trabalhadores rurais, servos explorados, soldados que deram baixas – personagens miseráveis e oprimidos. Estes eram o “tipo ideal do conto francês, o pequeno que vai em frente logrando os grandes com sua esperteza” (DARNTON. 1986. p. 81).

É a natureza inescrutável e inexorável de calamidade que torna os contos tão comoventes, e não os finais felizes que ele, com frequência, adquirem depois do século XVIII. (DARNTON. 1986. p. 79). A realidade francesa do início dos tempos modernos é dura e perigosa, onde desastres ocorrem sem que os camponeses esperem, obrigando-os somente a aceitar a situação que viviam. Eles habitam um mundo onde a virtude cede lugar à imoralidade e à desconfiança.

Os idiotas e estúpidos são desvalorizados pelos contos, sobressaindo-se aqueles que apesar de sua fragilidade, são astutos e usam da esperteza inerente para lograr os poderosos e resistir aos inimigos e superiores.
O que importa não é a novidade do assunto, mas sua significação – maneira como ele se enquadra na estrutura de um relato e toma forma quando é narrado um conto. Ao vivarem a mesa contra os ricos e poderosos, os oprimidos franceses o fazem de uma maneira bem material, num cenário bem terreno. (DARNTON. 1986. p. 82-83).
Enganar e humilhar os poderosos e ricos, mesmo que em imaginação, era tema constante nos contos franceses.

Os logros não serviam apenas para lidar com a dura realidade camponesa, mas também serviam para cada um conseguir seu lugar no paraíso. Para os camponeses “o céu é sempre tão estratificado quanto a corte de Luis XIV, e se pode entrar nele usando de engodos. O engodo serve muito bem como estratégia para viver”(DARNTON. 1986. p. 87).
Um conto que expressa isso é o conto final de “Le diable et Le marechal ferrant” (conto tipo 330) onde o herói, um ferreiro, utiliza-se de logros para enganar tanto o Céu quanto o Inferno, através de objetos mágicos que ele recebeu de presente do próprio Jesus Cristo e São Pedro. No fim deste conto o ferreiro consegue seu lugar privilegiado no Paraíso, ao lado de Deus.

A moral existente nos contos franceses não tardou a virar provérbios que retratassem a sabedoria contida neles:
·         Para esperto, esperto e meio.
·         Para o bom gato, um bom rato.
·         Ao pobre, o saco para esmolar.
·         Não se faz nenhuma omelete sem quebrar os ovos.
·         O estômago faminto não tem ouvidos.
·         A cabra tem de pastar onde foi amarrada.
·         Não é sua culpa, se as rãs não têm caudas.
·         Todo mundo precisa viver, os ladrões e os outros.

Os contadores de histórias não tinham por objetivos moralizar os temas. Eles apenas contavam suas histórias, que passavam de geração em geração, sendo absorvidas pelo “espírito francês”.

Os contos e provérbios – o estilo cultural francês – formava um estilo diferente, na qual os oprimidos daquela época transmitiam uma visão própria de mundo: uma noção de que
A vida é dura, de que é melhor não se ter nenhuma ilusão sobre o desprendimento dos demais seres humanos, que a clareza das ideias e o raciocínio rápido são necessários para proteger o pouco que se pode extrair do ambiente em torno, e que a retidão moral não vai levar a pessoa a parte alguma. (DARNTON. 1986. p. 88-89).
A Mamãe Ganso de Perrault é apenas uma micro parcela do todo o vasto folclore que dominava a França no início dos tempos modernos. Os contos franceses traduziam a maneira com que os camponeses e artesãos – o terceiro estado – do Antigo Regime viam sua realidade. Eles falavam das interpretações de atitudes e valores e não de aspectos geográficos ou particularidades monográficas. Os camponeses do Antigo Regime
Tentavam entender o mundo em toda sua barulhenta e movimentada confusão, com os materiais que dispunham. Esses materiais incluíam um vastos repertório de histórias tiradas da antiga tradição indo-europeia. Os contadores de histórias camponeses não achavam as histórias apenas divertidas, assustadoras ou funcionais. Achavam-nas “boas para pensar” […] No processo, infundiram aos contos muitos significados, cuja maioria se perdeu, porque estavam inseridos em contextos e desempenhos que não podem ser reconstituídos. […] Os contos franceses têm um estilo comum de elaborar a experiência. […] mostram como é feito o mundo e como enfrentá-lo. O mundo é composto de tolos e velhacos, dizem: melhor ser velhaco que um tolo. (DARNTON. 1986. p. 91-92).
Com o passar do tempo os contos populares franceses se difundiram, tornando-se tema que predominava na cultura em geral, tanto nos níveis popular quanto sofisticado.
Perrault contribuiu enormemente para essa difusão e desenvolvimento dos contos camponeses – que já não mais expressam a miséria do Antigo Regime.
Porém, mesmo depois de dominadas pelas diferentes correntes culturais franceses, os contos não deixam de testemunhar uma antiga visão de mundo, “mudaram ser perder seu sabor”.
Referências Bibliográficas
 DARNTON, Robert. Histórias que os camponeses contam: o significado de Mamãe Ganso.  In:_______. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal. 1986. pág. 21 a 101.
 DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal. 1986.
 Figueiredo, Luciano; Schwarcz, Lilia Moritz. Entrevista com Robert Darnton. Revista de História.com.br. 26 de outubro de 2010. Disponível em: <http://www.revistadehistoria.com.br/secao/entrevista/robert-darnton>. Acesso em: 10 de jun. de 2011.
 OLIVEIRA, Cristiane Madanêlo de. Charles Perrault (1628-1703).  
Disponível em: <http://www.graudez.com.br/litinf/autores/perrault/perrault.htm>.
Acesso em: 11 de jun. de 2011.

 SOBOUL, Albert. A Revolução Francesa. Tradução de Hélio Pólvora. Rio de Janeiro: Zahar. 1964.

 STIGAR, Robson. Os desafios da história cultural segundo Robert Darnton. Disponível em: <http://www.webartigos.com/articles/6160/1/Os-Desafios-Da-Historia-Cultural-Segundo-Robert-Darnton/pagina1.html>. Acesso em: 10 de jun. de 2011.