Por Jeniffer Modenuti
De fato o sistema de poder no Brasil é um sistema arcaico. Ele mantém no poder os mesmos grupos e partidos – hoje somos governados por um integrante do MDB – mesmo MDB da época da Ditadura Militar, que congregou em si as classes poderosas do nosso país. Antes disso foram as oligarquias, o governo da política Café com Leite e dos Coronéis. Sempre as classes poderosas estiveram se mantendo no poder. Por classes poderosas eu digo: os grandes proprietários de terras e agronegócio, da indústria, da mídia. Como dizia Celso Furtado, economista brasileiro e que por anos esteve à frente da CEPAL (comissão econômica para a América Latina) o grande problema do Brasil, e razão de seu subdesenvolvimento, é a desigualdade sistêmica a qual estamos submetidos: um país que concentra renda, recursos, riquezas e poder nas mãos de uma parcela mínima da população, de uma pequena oligarquia. Foi assim no passado, é assim ainda hoje – basta vermos quem é a nossa próxima ministra da Agricultura… Ou a destruição do ministério do trabalho… Ou a censura que está sendo colocada sobre tudo e todos.
Certamente temos muitos problemas no Brasil. Mas o que mais me incomoda é a superficialidade em que as discussões ocorrem. Quando vou dizer porque a Sociologia surgiu, em minhas aulas para o primeiro ano do Ensino Médio faço algumas analogias básicas:
Se você está com um problema no coração, quem você procura? E se precisa fazer um transplante, a quem você vai recorrer? Certamente você não irá querer um carteiro te examinando, nem um youtuber abrindo seu peito para trocar seu coração – mesmo que ele tenha um canal sobre Grey’s Anatomy com milhões de inscritos. Ninguém é tão tapado assim. Então, porque raios, hoje um Youtuber vale mais que centenas de Cientistas juntos?
A resposta aos meus alunos é clara: da mesma forma que, quando doente você vai ao médico, quando a sociedade apresenta problemas, você recorre ao Cientista Social. Simples assim? Quem dera fosse…
Vejo muitos Youtubers cometerem erros teóricos e factuais claríssimos. Como o fato de afirmar que o Nazismo foi de esquerda, ou de afirmar que o sistema comunista tenta ser implementado no Brasil. O próprio debate que se levanta sobre o socialismo e comunismo tem falhas sérias para quem estuda o que é, de fato, o socialismo e o comunismo. O problema é que para argumentar e mostrar como ele está errado, você precisa de muita aula de História, Filosofia, Sociologia e Ciência Política. Além é claro de muita leitura. Só que ler é um grande problema, já que vivemos em um país que 3 a cada 10 pessoas é uma analfabeta funcional: sabe ler, porém não é capaz de compreender o que leu.
É muito fácil você convencer quem não sabe nada sobre determinados assuntos. Principalmente quando você usa palavras bonitas, chavões de impactos e ainda apela ao emocional do público ao qual se dirige. A Psicologia explica isso, a Ciência explica que a opinião pública é facilmente manipulada, e ela ainda diz como.
O projeto do Brasil não é um projeto de esquerda. Mas sim um projeto de manutenção dos privilégios de camadas proprietárias e conservadoras. Por outro lado, o projeto do Brasil no período de PT é muito mais próximo do New Deal e do Keynesianismo aplicado em vários países ocidentais após o crash da bolsa de valores de 1929 em Nova York e da destruição européia gerada pela II Guerra Mundial. O problema é que muitas pessoas nem sabem o que foi o New Deal, nem fazem ideia do que é o Keynesianismo…
Existe uma distância muito, mas muito grande entre o que foi proposto pelas teorias Marxianas, escritas por Karl Marx em 1840 a 1880, daquelas que foram aplicadas na União Soviética após a revolução russa de 1917. Tão distintas como as que passaram a ser desenvolvidas por Josef Stálin durante os anos do totalitarismo Stalinista. O marxismo é um aglomerado de várias releituras e pensadores que parte da ideia de que existe um conflito de classes na sociedade que gera desigualdade e explora o trabalhador. Mas os diferentes marxistas apresentam cada um seus caminhos, análises e interpretações. Alguns criticam uns aos outros, apresentam novos fatos, lidam com novas realidades. O marxismo é uma corrente de pensamento – e como tal, está em movimento como um rio, sempre seguindo em frente, se renovando. É teoricamente errado generalizar este pensamento a uma única esfera de crítica para dizer: o comunismo não deu certo.
Não vejo como a Ciência possa ser doutrinadora dessa forma que nos acusam. A Ciência nos ensina justamente a desenvolver a perspectiva crítica, olhando sobre diversos ângulos uma mesma questão.
Uma das minhas primeiras aulas enquanto estudante de Ciências Sociais foi justamente com um texto de Karel Kosik, onde se é defendido a importância de fazermos desvios que valorizem a diversidade de pontos de vista que um mesmo fenômeno possa apresentar. E que devemos ter a consciência de o que torna a Ciência rica é sua capacidade de ser combatida, ser contestada e comprovada, depois ser contestada e renovada, e assim sucessivamente. Que a Ciência não se acaba em uma única resposta cabal e incontestável. Nos fatos, novas situações e novos contextos podem nos levar a reavaliar e reanalisar os estudos. Ciência é movimento.
Na Universidade tive, e ainda tenho, contato com inúmeros professores, centenas de pesquisadores das mais diferentes áreas, ideologias, objetos de estudos, opiniões e estilos de vida. Não consigo ver onde as pessoas insistem em dizer que a universidade é um espaço dominado pela esquerda – como se lá só existisse uma única perspectiva. [Além, é claro, da minoria sofrida que defende a direita, a família e os verdadeiros valores (em geral patriarcais e cristãos), mas que sofre nas mãos desses ditadores comunistas!]
Talvez o problema seja que a Ciência, ao nos ajudar a ver verdades, a pensar e interpretar o nosso mundo, nos ajude também a criticar desigualdades, preconceitos, estigmas, paradigmas, valores e tradições. E ao fazê-lo, acabamos ameaçando aquele grupo conservador que concentra em si poderes, riquezas e, na grande parte das vezes, cargos políticos. Então, assim, nos tornamos perigosos. Ao apresentarmos as diferentes perspectivas sobre o mundo, que incluem a diversidade que aqui existe, nos tornamos uma ameça à manutenção da ordem que sempre esteve pré-estabelecida.
Então, por isso, falam de professores doutrinadores. De Universidade doutrinadora. Mas, para facilitar a crucificação dos doutrinadores, dá-lhe logo o título de comunista – já que desde muito tempo, e principalmente com os períodos da moral e cívica – comunista era aquele que representava tudo de ruim que podia existir. É fácil como assustar criança.
Quando eu era criança eu morria de medo do homem do saco, porque ele pegava crianças que andavam sozinhas, as colocava num saco e levava para fazer sabão. Não me importava que eu nunca tivesse visto o homem com um saco, nem mesmo que nunca tivesse conhecido alguma criança que de fato havia virado sabão.
O mesmo ocorre hoje. Apenas troque o homem do saco pelo comunista esquerdopata, e troque a criança inocente pelo analfabeto político e funcional. Certamente minha mãe sabia que o homem do saco não existia, mas ela precisava me convencer que devia obedecer as suas regras. Certamente esses ditos “eruditos de youtube” também sabem que estão fazendo afirmações que podem facilmente serem derrubadas pela História e pela Ciência. Contudo, eles precisam convencer seu público a seguir as suas ideias. Eu nunca pensei em contestar minha mãe, afinal, porque ela mentiria? O meu medo era maior que minha capacidade de raciocínio.