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O que dizer sobre o feminismo presente em “Coisa Mais Linda” (Netflix, 2019)

ALERTA DE SPOILER!!!

Coisa Mais Linda estreou recentemente na Netflix e não pude deixar de assistir a essa nova série brasileira. Já realizei uma pequena resenha de quem são e o que querem as 4 mulheres que acompanham a trama, mas agora quero comentar alguns pontos que me chamaram atenção ao longo da série, que traz em seu enredo o feminismo e o empoderamento. ]
        Fiquem avisados que o texto está recheado de spoilers. Então, se você ainda não assistiu, corre lá no sofá, liga sua tevê na Netflix, e depois volta aqui pra ler e comentar o que você também achou.

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Theresa assume a redação da Revista Ângela (Netflix)

Uma revista para mulheres deve ser feita por mulheres. Óbvio, não? Errado! Coisas que nunca paramos para pensar, mas que quando a ficha cai, dá aquele nó na garganta. Desde a imprensa de Gutemberg e a popularização de folhetins para as mulheres era comum que homens produzissem os textos e matérias que seriam destinados às mulheres. 
        O pior é que perceber que essas revistas eram usadas para ditar os padrões de comportamento, relacionamentos e papéis que as mulheres deveriam desempenhar na sociedade, de acordo com o que era colocado de expectativa sobre elas. Aí vemos como o patriarcado opera: os padrões de feminilidade são ditados de acordo com aquilo que os homens esperam do que deve ser uma mulher ou o feminino.

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        Os gostos e hábitos das mulheres ditados de acordo com as perspectivas dos homens. A dominação masculina operando sobre as regras e padrões sociais. Theresa  (Mel Lisboa) era, a princípio, a única mulher em uma revista feminina. E suas ideias eram consideradas por seus editores como não femininas ou rebeldes ou subversivas. Para seus superiores as ideias de Theresa não correspondiam com “o que as mulheres querem saber”, como reportagens sobre política ou a construção de Brasília, por exemplo.

        Mel Lisboa (Theresa) escandalizou a tevê brasileira quando interpretou a personagem título em Presença de Anita. Eu era muito pequena, e consigo apenas lembrar dos comentários da minha mãe e tias de que a série era depravada e mostrava demais, pura indecência! O fato é que o corpo feminino, especialmente os seios, são muito usados pela mídia como mercadorias. Game of Thrones que o diga!

De fato, os seios foram usados em alguns momentos da série. Mas o corpo de Adélia (Pahty Dejesus) foi sempre tratado com mais prudência perante as câmeras. Acredito que isso foi bem pensado pelos produtores. 

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Adélia como mulher de fibra, e não como só mais um corpo negro (Netflix)


        Por ser um produto que se pretende vender na gringa, tratar o corpo da mulher negra brasileira de modo mais contido é uma contraposição em relação à percepção que muitos estrangeiros têm em a respeito da mulata nacional, produto sexualmente apreciável e consumível.
        Ali, Adélia foi retratada como uma mulher de fibra, que trabalha e luta para manter o sustento de sua família, suas amizades e para realizar seus sonhos. Adélia, um sujeito, com personalidade e essência. Não a mulata dos peitos roliços para vender sexo. Ponto pra você, Netflix!

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Malu assume de frente sua vida e sua sexualidade (Netflix)

        

Maria Casadevall (Malu) causou reboliço ao sair com os seios à mostra no carnaval deste ano. Afinal, era uma expressão feminista, ou uma objetificação? Talvez, uma declaração de independência e propriedade.
        Na série, Casadevall exibe seus seios de modo comercial. Ali eles não pertencem a ela, eles são uma mercadoria bem planejada como qualquer jogo de câmera, linha de texto dita ou ato encenado. Quem decide por usa exposição são os escritores, diretores e produtores.
        Mas no carnaval, os seios eram apenas dela. Ali eles eram sua expressão política porque foi sua escolha exibi-los. E olhe só, não há nada de extraordinário em um pedaço de tecido adiposo coberto por uma epiderme. Somo nós que damos significado simbólico ao seio. E aos seios de Casadevall, ela dá o significado que quiser!
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Ligia resolve lutar por seus sonhos e enfrenta seu marido violento (Netflix)

        Fernanda Vasconcellos (Ligia) me conquistou desde Malhação, então sou suspeita para falar, mas para mim, essa atriz carregou com maestria boa parte do eixo dramático, e dos mais problemáticos, dessa série.
        Que coisa mais linda sua atuação! Mas também dolorida. As surras que ela recebia calada, o estupro que sofre de seu marido e o (a tentativa?) de feminicídio ao desfecho do episódio final foram de partir o coração. E dói porque sabemos que é tão real. Nos primeiros dois meses de 2019 o Brasil bateu tristes recordes de feminicídio.

        A cena do estupro também foi muito bem tratada na trama, quando o foco da câmera estava na expressão de sofrimento do rosto de Ligia. Já me cansei de cenas de estupro em que o corpo da mulher é exibido na combinação de violência e sexo. Um pacote completo para a sociedade que adora consumir ambos. Juntos? Prato cheio! Outro ponto para a Netflix.
        Quando Ligia se descobre grávida do ex-marido abusador, ela decide abortar. O aborto, outro tema delicado, foi tratado de modo sutil, silencioso. Silenciosamente, mulheres abortam hoje, mulheres abortaram no passado. 
        O aborto é, e sempre foi, uma realidade. Mulheres cristãs, casadas e com mais de um filho são as que mais abortam em nosso país. Milhares de mulheres, principalmente as mais pobres, morrem por abortos realizados em condições precárias.
        Mas, ainda assim, a moral conservadora quer proibir de tratar esse assunto como uma questão de saúde e qualidade de vida para as mulheres. A série mostra o aborto como uma decisão pessoal: há quem discorde, há quem aceite, mas a decisão é da mulher.
        Outro arco que observei um desenvolvimento interessante foi quando Theresa descobre que Adélia teve uma filha com seu marido. Juro que fiz uma prece silenciosa à Netflix para que não víssemos, como de costume, o típico dramalhão “mulher contra mulher por causa de um homem”.
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Theresa e Adélia dão exemplo de sororidade (Netflix)

Mas no final vemos Theresa e Adélia colocando a amizade e a compreensão à frente. Isso é emblemático diante às narrativas comuns da tradicional televisão brasileira. Você ganhou mais um pontinho, Netflix.
        Os machos também choram! Os personagens masculinos serviram para mostrar como o machismo também afeta os homens, e o quanto estes são cobrados pela sociedade para seguirem padrões de provedores do lar, firmes, insensíveis, rigorosos em manter o controle de seus lares e suas mulheres no cabresto. 

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Homens podem chorar: Nelson apresenta um contraste ao racismo, machismo e preconceito típicos aos homens de seu tempo (Netflix)


O maior contraste está entre os irmãos Augusto (Gustavo Vaz) e Nelson (Alexandre Cioletti). O primeiro expressa todo esse machismo em suas atitudes e na violência que trata sua esposa Lígia. Já Nelson, quebra padrões e, por isso, é considerado fraco e incompetente para sua mãe. 

Augusto não se permite chorar, por isso, sofre. Nelson sofre, por isso chora, porque sabe o quanto o machismo e o racismo também o machucam. O desfecho de Augusto, na tentativa de assassinar Ligia e Malu servem para nos mostrar o quanto o machismo é pernicioso para toda a sociedade.

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Augusto é um exemplo de como a masculinidade é tóxica para os homens e para a sociedade (Netflix)


Certamente nenhum dos discursos feministas, implícitos ou nem tanto, que aparecem ao longo da trama são inocentes. A Netflix conhece seu público e toda a sua posição política no enredo dessa série é uma faca de dois gumes: opera enquanto um resultado das narrativas feministas que empoderam mulheres por meio da mídia e do entretenimento; mas também não deixa de ser um produto que vende o feminismo como uma nova categoria de consumo. Enquanto mulher, a Netflix me ganhou em ambos os lados.
Não podemos fechar os olhos para o aspecto da indústria cultural, que também toma conta das questões sociais, e transforma as nossas lutas políticas em produtos mercadológicos.

O feminismo está vendendo. Isso é bom porque dá visibilidade às lutas das mulheres, porém devemos saber contextualizar esse tipo de produção como um produto histórico do nosso tempo atual. Nos anos 50 as Malus não eram tão independentes; as Adélias tinham mais chances de serem estupradas por seus patrões, do que por eles se apaixonarem; Theresas eram ainda mais escassas no mercado de trabalho; e Ligias permaneciam apanhando caladas – e permanecem até hoje. Coisa mais Linda é uma série para o nosso tempo, ainda que retrate o passado. Nos dá esperanças de dias melhores, reforça o valor da empatia e nos mostra que devemos fazer ouvir nossa voz.

E aí, o que você achou? Deixe seus comentários!